Lembrança

Davi Raubach
2 min readApr 8, 2020

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ao meu avô (em memória)

As coisas estão me esquecendo. Minhas anotações não reconhecem meus pensamentos, as fotos não lembram meu rosto, mesmo um simples devaneio não consegue por um pé depois do outro. Em algum lugar deste milharal há um espaço a ser imaginado, mas ele não consegue lembrar de mim. Remonta Lete, meu cachorro, saltando no pasto e facilmente redesenha seu trajeto farejando ratos passados; até o sopro do vento refaz e não faz a menor ideia minha.

Hoje recebi uma carta de minha própria casa. Dizia que sonhara com pés e pernas circulando por corredores e varandas — eram varandas arqueadas, semicirculares e mnemônicas, onde eu sentava dia findado. Escrevia ainda que não entendia, que lembrava do endereço… e seguia com explicações educadas para aquele contato “anormal”. Mas com que cara li isso? Não era eu mais que um vulto no sonho dela — eu mesmo dei forma àquelas varandas, que poderia ver daqui, não fosse esta lavoura.

Que cara imagino em meu rosto agora, neste corredor de plantas secas, perdido entre os grãos de som que me cercam e que só não me esqueceram porque não conheciam minha escuta até agora? Com que cara paro aqui com esta carta que logo me esquecerá em seu envelope?

Lembro da minha camisa dobrada que não sabe meu corpo, da boina pendurada que não botou sentido em sair comigo, das palavras que esqueceram minha boca, da melodia que perdeu meu assovio, desta enxada caída a minha frente, destas espigas indiferentes, e deste dia que não finda.

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